Diariamente aquele casal de
urubus sobrevoava Santa Teresa. Sabiam que em alguns terrenos baldios podiam
encontrar a carniça que tanto apreciavam. Ratos, gatos ou pombos. Quando davam
sorte encontravam um cachorro gordo com larvas. Mas as situações que festejavam
mesmo eram quando viam um exemplar da espécie humana salpicado de furos. Não é
que sua carne fosse mais saborosa do que qualquer um daqueles outros animais,
nem mesmo porque fosse mais abundante ou macia. Nesse ponto os seus parentes do
campo eram mais bem servidos. Carniças de boi e de cavalo eram iguarias que
eles nunca experimentariam em Santa Teresa. Contudo, cadáveres humanos eram
muito apreciados pela sua raridade e pela esquisitice do seu sabor no qual
ressaltavam aromas variados de laticínios, álcoois, gorduras de várias origens
que matizavam sua flora intestinal e envolvia o ar com vapores sutis.
Por isso, ao sobrevoarem os
fundos da travessa Poti, naquela madrugada de outubro, ao sentirem aquele aroma
de sangue humano no ar, eles imediatamente pousarem, recurvados e
investigativos, a fim de descobrirem a fonte do odor. Não custou muito para que
percebessem o corpo da mulher ao pé mesmo do muro onde estavam. Era uma mulher
isso podiam reconhecer. O resto era difícil saber. Por que tinham tanto sangue
no rosto? Isso era uma novidade para eles. Mas ela gemia. Então era preciso
esperar.
Sai daqui, raça ruim. Ela disse.
E isso eles já tinham ouvido. Não com as mesmas palavras, mas com a mesma
entonação. A espécie humana tinha essa característica quando estava em estado
de quase carniça e os avistava. Queria enxotá-los porque achava que eles tinham
o poder de apressar o processo. Coisa que eles sabiam não possuir. Mas eles não
se importavam, até porque naquele estado, podia-se ser muito pouco ameaçador.
O choro da mulher cortou o ar com
uma força maior. Ela gritou por socorro. E o casal de urubus viu uma ou duas
luzes acenderem em janelas próximas. Mas nenhuma janela se abriu. Todo aquele
espetáculo prejudicava um pouco o apetite do casal. De algum modo eles sabiam
que gritos, luzes e outros elementos dramáticos não tinham nada a ver com o exercício
de sua função básica de sobrevivência. Aliás, ninguém gosta de associar a sua
comida à dor daqueles que são os seus ingredientes. Eles prefeririam bem mais
que aquela mulher morresse logo e que eles pudessem se servir da carniça e
depois continuar a sobrevoar o bairro. A temperatura estava amena e encontrar
um lugar onde pudessem ressonar enquanto faziam a digestão seria certamente
fácil.
Mas a mulher se arrastava e gemia
e gritava e os enxotava como se fosse uma artista de teatro. Exagerava no
choro. Queria chamar a atenção dos moradores das proximidades certamente, mas
eles também eram como os urubus, não estavam a fim de drama.
Até que o casal de urubus viu uma
pessoa entrar no beco. Isso às vezes acontecia. A chegada de alguém com poder
real de enxotá-los. Mas também era possível que essa pessoa, ao se deparar com
a cena deles ali envergados sobre alguém em estado de quase carniça, fugisse.
Isso, eles já tinham visto acontecer. Com a paciência própria de quem não mata
a sua presa, os urubus esperaram para ver o que aconteceria.