domingo, 15 de junho de 2014

Poti


Diariamente aquele casal de urubus sobrevoava Santa Teresa. Sabiam que em alguns terrenos baldios podiam encontrar a carniça que tanto apreciavam. Ratos, gatos ou pombos. Quando davam sorte encontravam um cachorro gordo com larvas. Mas as situações que festejavam mesmo eram quando viam um exemplar da espécie humana salpicado de furos. Não é que sua carne fosse mais saborosa do que qualquer um daqueles outros animais, nem mesmo porque fosse mais abundante ou macia. Nesse ponto os seus parentes do campo eram mais bem servidos. Carniças de boi e de cavalo eram iguarias que eles nunca experimentariam em Santa Teresa. Contudo, cadáveres humanos eram muito apreciados pela sua raridade e pela esquisitice do seu sabor no qual ressaltavam aromas variados de laticínios, álcoois, gorduras de várias origens que matizavam sua flora intestinal e envolvia o ar com vapores sutis.
          Por isso, ao sobrevoarem os fundos da travessa Poti, naquela madrugada de outubro, ao sentirem aquele aroma de sangue humano no ar, eles imediatamente pousarem, recurvados e investigativos, a fim de descobrirem a fonte do odor. Não custou muito para que percebessem o corpo da mulher ao pé mesmo do muro onde estavam. Era uma mulher isso podiam reconhecer. O resto era difícil saber. Por que tinham tanto sangue no rosto? Isso era uma novidade para eles. Mas ela gemia. Então era preciso esperar.
          Sai daqui, raça ruim. Ela disse. E isso eles já tinham ouvido. Não com as mesmas palavras, mas com a mesma entonação. A espécie humana tinha essa característica quando estava em estado de quase carniça e os avistava. Queria enxotá-los porque achava que eles tinham o poder de apressar o processo. Coisa que eles sabiam não possuir. Mas eles não se importavam, até porque naquele estado, podia-se ser muito pouco ameaçador.
          O choro da mulher cortou o ar com uma força maior. Ela gritou por socorro. E o casal de urubus viu uma ou duas luzes acenderem em janelas próximas. Mas nenhuma janela se abriu. Todo aquele espetáculo prejudicava um pouco o apetite do casal. De algum modo eles sabiam que gritos, luzes e outros elementos dramáticos não tinham nada a ver com o exercício de sua função básica de sobrevivência. Aliás, ninguém gosta de associar a sua comida à dor daqueles que são os seus ingredientes. Eles prefeririam bem mais que aquela mulher morresse logo e que eles pudessem se servir da carniça e depois continuar a sobrevoar o bairro. A temperatura estava amena e encontrar um lugar onde pudessem ressonar enquanto faziam a digestão seria certamente fácil.
          Mas a mulher se arrastava e gemia e gritava e os enxotava como se fosse uma artista de teatro. Exagerava no choro. Queria chamar a atenção dos moradores das proximidades certamente, mas eles também eram como os urubus, não estavam a fim de drama.
Até que o casal de urubus viu uma pessoa entrar no beco. Isso às vezes acontecia. A chegada de alguém com poder real de enxotá-los. Mas também era possível que essa pessoa, ao se deparar com a cena deles ali envergados sobre alguém em estado de quase carniça, fugisse. Isso, eles já tinham visto acontecer. Com a paciência própria de quem não mata a sua presa, os urubus esperaram para ver o que aconteceria.
          Por mais estranho que pareça, a mulher ao ouvir os passos, se calou. A pessoa, que era um homem, chegou bem perto dela. Enfiou o pé na cara dela e resmungou: eu disse para ficar calada.  E finalmente o ar se encheu daquele aroma peculiar.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Fundos

Seguro firme tábua em que me seguro. Conto não conto estórias, por conta de medos.
No de repente, uma bomba. Passou rápido mas vi seu nome desenhado – LITERATURA.